quinta-feira, 19 de outubro de 2017

"O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso..."Darcy Ribeiro

Discursos reveladores...



Por Alessandra Leles Rocha




Algumas verdades são bastante inconvenientes porque desnudam o ser humano e nos dão a exata dimensão do que ele esconde por detrás das aparências. A edição da Portaria nº. 1129, de 13/10/2017 1, do Ministério do Trabalho, têm gerado inúmeros protestos e indignação na sociedade brasileira e abriu um espaço relevante para a reflexão sobre o nosso senso de humanidade.
Nos traços do seu primitivismo, o que permite espaço para discutirmos sobre escravidão, exploração, tráfico de pessoas e tantas outras barbáries está no fato de que, consciente ou inconscientemente, o ser humano acredita na existência de critérios de superioridade e importância, buscando para isso desde fundamentações religiosas até científicas. Tudo se transforma em estopim para satisfazer a esses discursos e como consequência deles, promover a disseminação da intolerância e violência em relação à crença, ao gênero, a condição social, ao biótipo, a etnia, etc., como temos visto por aí.
É partindo dessa premissa que o ser humano sem nenhum constrangimento chegou ao ponto de usurpar da vida de seus pares e colocá-los na mais plena condição de indignidade para satisfazer ao seu próprio benefício. Impérios foram erguidos assim, com pessoas sendo consideradas mercadorias, a serem vendidas, compradas ou trocadas por animais ou dívidas, em mercados do mundo.
Na Mesopotâmia, na Índia, na China, no Egito, na Grécia, nas Civilizações pré-colombianas,... as páginas da história dão conta de como sociedades aparentemente tão distintas eram em essência tão iguais, quando o assunto era a escravização de seres humanos. Escravos não eram cidadãos, não tinham direitos, tinham deveres. Em geral, eles eram o espólio de guerra e destinavam-se a atender aos serviços domésticos, na agricultura, nas minas, nos exércitos, como remadores de barcos e outras funções braçais.
A partir do Iluminismo, no século XVIII, as reações contra a prática escravagista se acentuaram, no sentido de apontar a imoralidade que ela representava para uma sociedade tida como intelectualizada e dotada de profunda racionalidade. Então, no século XIX, ela tornou-se proibida em várias partes do planeta, o que não significou exatamente o fim da sua existência.
Entretanto, nesse transitar histórico, ocorre no século XVIII a Revolução Industrial, na Inglaterra, e a partir dela um novo modo de organização do trabalho se institui fundamentado pela economia capitalista moderna. Embora o trabalhador passe a ser assalariado, a paga pelo seu trabalho faz surgir a mais-valia, ou seja, parte do valor da força de trabalho dispendida por um determinado trabalhador na produção não é remunerada pelo patrão. Inicia-se, portanto, a exploração. As péssimas condições de trabalho e vida se traduziam em jornadas de trabalho que superavam 15 horas diárias e, também, incluíam mulheres e crianças em atividades desumanas. Para combater a exploração, a classe operária cria, de forma clandestina, as uniões de ofícios (precursoras dos sindicatos).
Isso significa que, além do trabalho escravo propriamente dito não ter sido completamente extinto, surgiu à exploração do trabalhador assalariado, ou seja, o discurso humano sobre “a existência de critérios de superioridade e importância” encontrava mecanismos para permanecer entre nós. Na verdade, a escravidão e a exploração tornaram-se a mesma coisa, na medida em que a práxis da submissão humana às condições degradantes e indignas continuava acontecendo e não incomodando uma parcela da população, a dos donos dos meios de produção.
E assim chegamos ao século XXI... Não consigo deixar de pensar sobre essas palavras da filósofa norte-americana de origem judaico-russa, Ayn Rand: Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada”.
São as pessoas a que ela se refere é que disseminam e perpetuam os discursos de um novo escravagismo pelo mundo. De fato, ressalvo raríssimas exceções, ninguém está acorrentado durante o trabalho; mas, as relações estão distantes, anos luz, do que pregam os fundamentos previstos nos incisos II, III e IV, do artigo 1º, da Constituição Federal de 1988. Afinal de contas, desrespeitar tais relações é desrespeitar a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Se nos primórdios da Revolução Industrial a insalubridade e as longas jornadas encurtaram a vida de milhares de pessoas, essa realidade não ficou no passado.  O stress no ambiente de trabalho está associado às novas tendências tecnológicas, responsáveis pelo estado de constante atenção, disponibilidade e competição a que os empregados estão submetidos em suas jornadas laborais. Ao viverem em ritmo de intensidade incompatível com o bem-estar necessário, os trabalhadores têm ficado doentes ao ponto de se tornarem incapacitados para o trabalho. Taquicardia, tensão muscular, dores de estômago, cansaço e dificuldades de memorização, em relativo espaço de tempo  esses sintomas se somatizam e conduzem o trabalhador a quadros mais sérios, tais como: LER/DORT (Lesão por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), Depressão, Síndrome do Pânico, Surdez, Desgaste da Visão.
Isso ocorre porque na tentativa de alcançar a dignidade de seus direitos sociais – Educação, Saúde, Lazer, Segurança, Previdência Social -, o ser humano precisa recorrer a jornadas duplas ou triplas de trabalho, comprometendo assim o seu bem estar físico, psíquico, emocional e afetivo. Nessa roda-viva é claro que o ônus da situação uma hora recai sobre o Estado, no âmbito de auxílios oferecidos pelo INSS – aposentadoria por invalidez, aposentadoria especial, auxílio-acidente, auxílio-doença, auxílio-doença acidentário, pensão por morte – e, de atendimentos de saúde pelo SUS. Com 13,3 milhões de desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deveria ser do interesse do Estado garantir segurança e dignidade ao cidadão trabalhador de modo que este não precisasse de políticas assistencialistas, não é mesmo?
Portanto, além do discurso revelador manifesto pela Portaria nº. 1129, de 13/10/2017, paira no ar o receio de que essa medida venha, de repente, favorecer a abertura de eventuais vagas de “trabalho”; na verdade, novas frentes de consolidação da velha e conhecida práxis da submissão humana às condições degradantes e indignas, fundamentadas na Lei da Oferta e da Procura para mão de obra. Nesse contexto, o Estado sairia ganhando com a mitigação do impacto em seus gastos; mas, e a sociedade?
Preste atenção nos discursos. Preste atenção no que você diz e pensa. No fim das contas, o bom e o ruim da vida sempre recaem sobre você. Você paga a conta do justo e do injusto da vida. Da desigualdade que fomenta a anticidadania. Da marginalização da raça humana, a qual você faz parte (se lembra?). Enfim... Como eu mesma escrevi, em abril de 2010 2, “TRABALHO. Bendito seria ele se fosse reconhecido, se recebêssemos a paga justa, se nos devolvesse de fato a dignidade, a cidadania e a consciência da própria vida. Não temos mais senzalas, troncos, correntes, açoites ou chibatas; mas, continuamos a ver cidadãos brasileiros (de todas as etnias, credos, idades, gêneros, graus de escolaridade) todos os dias com os olhos e alma cabisbaixos, tristes, cansados, humilhados, comprimidos nos trens, nos ônibus, nas lotações pela busca do sagrado pão de cada dia. Esse “moderno escravagismo remunerado”, que ainda nos surpreende com a versatilidade brasileira dos que conseguem sobreviver com um salário mínimo, há de um dia restar somente nos livros como símbolo de uma época da inconsciência de um desenvolvimento desigual e distante do que se espera de uma grande nação”. Fica a reflexão!







1 Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei nº 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=351466

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